sexta-feira, 23 de maio de 2008

Aos meus amigos de Faculdade: Apontamentos para uma Crônica Machista.


A cena que ponho-me a descrever não é um regozijo pra minhas posturas, não é o triunfo da liberdade. Nem da propriedade. Nem da transnacionalização do capital. É o inevitável rumo que as armas de fogo impuseram à nossas revoluções culturais. Não se trata – apresso-me em dizer – de uma generalização processada pelo intelecto, trata-se, sim, de uma generalização grosseira de uma cabeça cansada, pronta pra apreender o ridículo das pessoas graças àquela velha máxima do cego que não quer ver, não gosta de ver, ou sei lá que outro tipo de miopia existencial, e existem tantas.


Vou apelar ao realismo paulista.


A cena se passa num restaurante que transmite a eliminação do Santos – o time do Pelé – dum campeonato de uma América Latina convulsa.

Por volta da hora que as famílias já jantaram e pedem a última rodada socialmente ok, consegue-se perceber claramente o quanto os publicitários de cerveja são magníficos. O esporte na televisão, o copo, a cena. O barulho alienígena das crianças, do pula-pula, do quebra-copos, da torcida aficionada. Como estava dizendo, o poeta dos anúncios sempre esteve certo.

A senhora – embora a esse título ela resista com sua tenacidade de leoa amamentando – começa a beber em demasia. Uma leve demasia.

O senhor, de boné enfiado na cachola quadrada, com seu ar de pescaria mensal, aceita os rompantes da leoa, pois é de sua espécie. Não é bobo, é uma grande mamífera.

As outras pessoas em torno da mesa comprida se amontoam em torno do restos da janta, vasilha de batatinha frita com o alface do canto engordurado, milhões de coca-colas – abandonadas pelos alienígenas entretidos com o pula-pula - , e o esporte na TV: a vedete da noitada.

Ela diz que está cansada do futebol, inicia a guerra dos sexos tão tradicional e tão patética. Todos apreciam conversar aos berros sobre as diferenças darwinianas entre homens e mulheres, como se o gosto pelo futebol fosse um gene, um cromossomo impenetrável.

Ela quer música, e se expande. Em menos de cinco minutos está aos berros contra o dono da espelunca que, sem o menor trato social – não a trata convenientemente. Ela está pagando, oras, e não existe música. Ah, o menino está com sede e não temos laranja.

E é o caos, o marido da fera aceita o chilique, faz parte do extravasar feminino beber um catiquinho a mais e sentir a liberdade que pertence, por direito e democracia, a ele, o subjugado da vez.

No fim, o esporte acaba, a paciência dos espectadores mingua. Ela estava pagando, e berrando o quanto isso a fazia seleta.


Eis o retrato de meu apontamento machista. A loba não compreenderá tão cedo o caráter da independência sutil. Como norte-americanos, como publicitários de cerveja. Depois de tanto tempo de circuncisões e melancolias afins, a liberdade cai nos eixos, na perfumaria barata do decote exposto.

É a hora de pedir outra cerveja, desapontar-me com os alas do time que perdeu e pensar na lógica das coisas. É claro que gostar de futebol não basta, mas é um passo rumo à toda parafernália unanime. A senhora, o senhor e sua prole são o sucesso do mundo em que vivo, e quem pensa ser seleta sou eu. Me dá até um rompante nacionalista, uma tensão entre o que penso e as peças do Nelson Rodrigues. Por falta de fonte, penso nos palavrões que aprendi.

Nesse circo de horrores, posso esbravejar com a personagem, acusando-a de dialética. Ela vai dizer que não, que seu corpo enxuto não tem nada a ver com passar fome ou comer coisas lights. Vou pensar que é uma coitada, que não compreendeu as coisas importantes da vida e não é capaz de notar um mecanismo socio-econômico tão elementar, e ao mesmo tempo vou sentir uma tristeza profunda, pelo lixo metido-a-francês que é nossa instrução, nossa percepção, nossa raiva besta, nossa serena e confiante presunção.

Um comentário:

Stella Garcia disse...

A gente ainda tem coisas pra fazer antes.
Das nossas liberdades caírem nos eixos.
Antes que a gente implore por isso.
Ou queira.